Duas vezes na vida dedicaram poemas pra mim. Um deles terminava com a frase "Vim para o enterro do rei". O outro falava sobre ouvir meu nome pelas ruas de Portugal. Os dois foram escritos por meu amigo Otávio, que é poeta (também editor, revisor, professor e muitas outras coisas que não vou atribuir a ele sem autorização logo na época do seu aniversário). Sim, estou escrevendo uma crônica de aniversário, uma atitude complicada, que pode me comprometer futuramente — gerar ciúmes entre amigos que não receberem também uma crônica de aniversário. Mas me arrisco, afinal gosto de pensar que, de alguma maneira maluca e cósmica, minha alma escritora encontrou o espírito poeta do Otávio em 2009 pelos mais bonitos motivos do acaso, para que a gente pudesse escrever coisas que às vezes (por mais trabalho do acaso, essa divindade do universo que não tem mais o que fazer) pudessem se encontrar, como minha crônica de semana passada que é sobre um tema que Otávio está escrevendo um ensaio. Ou como quando a gente leu Cem anos de solidão e, apesar de cada leitura ter acontecido com meses de separação, sinto como se a gente tivesse lido junto, e nem sei o que foi ele que me disse sobre Melquíades ou o que foi eu que pensei. Ou ainda, sobre termos morado em uma mesma cidade de telhados brancos e pôr do sol na marina, e ido aos mesmos lugares, mas eu um ano depois, atrasada mas ainda em tempo de ver os rastros que meu amigo deixou nas ruas.
Otávio revisa minhas crônicas toda semana e há alguns anos foi meu professor favorito e me apresentou nas aulas a Frank O'Hara, Howl e muitas fofocas literárias. Em algum dia no ano passado, antes de existir um vírus entre nós, bebemos muito vinho e eu dormi na casa do Otávio e passei a manhã e o início da tarde (estava com muita ressaca para ir embora) vendo ele trabalhar, em sua ocupação de editor da Macondo, editora sobre a qual já falei por aqui. No meio de um quarto rodeado de livros e uma mesa bonita feita de porta de madeira, meu amigo me explicou sobre as muitas coisas que ele estava fazendo, sejam as criativas ou as burocráticas, me dando aquela sensação de um orgulho imenso quando podemos ver alguém brilhante sendo brilhante. Claro que eu não sei tudo sobre o Otávio, mas acho que sei um pouco mais depois de conhecer algumas das suas partes, assim como é possível saber ainda mais detalhes quando conheço a parte poeta, com sua distância, seus peixes fotografados, seus bichos caçados.
Essa crônica é para lembrar de quando a gente assistia jogo do Brasil e comemorava o gol do time adversário na janela pelo prazer de uma leve e perdoável subversão, apesar de, dentro de casa, estar torcendo para o Brasil ganhar, menos por patriotismo e mais pela vontade de que aquela farra da Copa do Mundo durasse mais dias. E do dia em que a gente sentou no chão do meu quarto e ficou ouvindo algum novo CD do Vanguart. Lembrar de brincar de mês na sala após Otávio lançar um livro em um dia e outro livro no outro. Lembrar de cantar no karaokê, assistir filmes do Almodóvar, jogar perfil, adivinhar que nome está no papel na sua testa, conversar um pouco sobre Salinger, muito sobre Elena Ferrante, ouvir Semáforo, dançar na sala da sua casa. Lembrar, mais uma vez, daquela lista que a gente escreveu nos meses em que moramos juntos na República do Pânico, em que você dizia que queria manter pelo menos três amizades daquela época quando chegasse aos 30 anos. Não sei que pessimismo te levou a pensar que não iam sobrar mais de três, mas culpo aquele texto famoso no Orkut, na época em que a gente se formou no Ensino Médio, que começava com a frase "A verdade é que a maioria de nós irá se separar". Você chegou aos 30 e a meta foi cumprida — vários amigos ficaram, incluindo eu. Afinal, apesar de com saudades, estamos próximos (ou melhor, somos) o suficiente para eu dedicar uma crônica para você. Se isso não é manter uma amizade, não sei dizer o que seria, apesar da sensação de falta de justiça que sinto ao enviar para você revisar uma crônica sobre você. Ainda por cima uma crônica provavelmente cheia de erros, comigo alternando entre a segunda e terceira pessoa ao me referir ao Otávio (você).
Semana passada você me disse que aquele era seu texto favorito até agora. Bom, espero que agora seja esse. Mas se não for, tudo bem. Feliz aniversário!
Com amor,
Alice
Indicações da semana:
A primeira delas é Vanguart cantando O Mar, do Dorival Caymmi. Uma música que já cantei muito com Otávio, mas que tanto o Otávio quanto eu também já cantamos muito com outras pessoas. A gente teve uma fase Vanguart muito forte (e por “a gente” me refiro a muita gente, incluindo dois diferentes grupos de amigos meus) e, ainda hoje, o pessoal pula bastante quando toca Semáforo. E Dorival Caymmi é sempre bom, à prova de fases.
A Aline Valek falando sobre desistência e falta de sentido: "Me agarro à verdade, o único truque que me restou, e a verdade é que o assunto que eu estava evitando era a única coisa que eu realmente tinha para dizer".
Para manter o clima de aniversário, esse perfil com bolos inusitados onde é possível passar horas só vendo os recheios serem revelados.
Sem criatividade para o encerramento hoje (é praticamente a parte mais difícil). Obrigada por chegarem até aqui (ou por pelo menos lerem a crônica e darem uma passada de olho nas indicações até a despedida).
Revisão Otávio Campos (o aniversariante)
Que lindo!!!!