Sabe quando a gente só percebe que alguma coisa estava faltando quando ela aparece? Tipo acrescentar um ingrediente novo em uma receita antiga e ver que fez toda a diferença? Ou encontrar um casaco que você não lembrava que tinha perdido, mas tem tudo a ver com você? Ou a clássica de quando a gente faz óculos novos após ir no oftalmologista e o mundo fica mais nítido e maravilhoso?
Foi assim que me senti essa semana voltando a trabalhar presencialmente. Uma coisa estranha e que processo enquanto escrevo essa crônica, mas arrisco a dizer que minha mente parece que voltou a funcionar.
Não me levem a mal, estou exausta. Na quinta-feira, dormi por 4 horas durante a tarde e eu nunca durmo à tarde (juro). Cheguei em casa da escola todos os dias com vontade de passar o dia sem fazer absolutamente nada (inclusive foi o que fiz na maior parte deles). Só fui na academia dois dos seis dias que pretendia, um pouco porque odeio ir à tarde, um pouco porque já sentia que tinha praticado um exercício físico ficando em pé por 4 horas e meia falando bastante nas minhas aulas (dar aula em pé é um novo desafio pessoal após meses na frente do computador).
Durante a pandemia não me senti menos criativa ou com o raciocínio mais lento. Achava que estava tudo funcionando nos conformes dentro da minha cabecinha. Claro, tive momentos de ansiedade, tristeza, raiva, medo, revolta e tantas outras emoções perturbadoras, como todo ser minimamente humano frente ao colapso mundial e ao Brasil de Bolson*ro. Mas, apesar de ter visto algumas pesquisas sobre a perda de habilidades sociais, criatividade comprometida e outras questões envolvendo estímulos cerebrais e mais detalhes que não entendo bem e não me atrevo a tentar explicar aqui, achava que eu estava “até que bem” e com as faculdades mentais intactas (como Esmé deseja que o Sargento X esteja no conto “Para Esmé com amor e sordidez” do Salinger).
Qual não foi minha surpresa, como quando coloquei meus novos óculos pela primeira vez, ao perceber que as faculdades mentais estavam comprometidas e começar a sentir como meu cérebro trabalha ao receber estímulos cerebrais suficientes ou coisa que o valha. Parece que recebi uma carga de bateria. Ouvir, falar, socializar, trocar, tudo ao mesmo tempo, em um dos lugares do mundo em que mais coisas acontecem ao mesmo tempo (sala de aula). Uma sensação de estar cansada, mas viva. Sem a mesma paciência de antes, mas presente. Não precisar de duas horas para ter uma ideia que antes (e agora novamente) eu consigo ter em poucos minutos.
Não quero criar expectativas irreais de que está tudo bem, porque é claro que não está. A sala dos professores parece estar sempre lotada, sem nenhuma necessidade aparente. Muitos alunos continuam sem comparecer às aulas, presenciais ou remotas. A escola, enquanto esse lugar contraditório de segurança e insegurança na vida de tantas pessoas, traz tudo à tona. Os problemas em casa, as dificuldades de aprendizado, a diversidade de alunos, o professor bolsonarista que faz questão de falar que não acredita em vacina. O que não era visto ou ouvido em um regime de aulas remoto e grupos de whatsapp agora está aqui escancarado na nossa frente, com uma pandemia de plano de fundo que ainda nos deixa vulneráveis e apavorados.
É difícil escrever esse texto. Mesclar a sensação de estalo que senti nesses últimos dias com a sensação de desamparo que só aumenta. Não é sobre “voltar ao normal”, mas sobre saber que o normal não é esse. Que a dificuldade de criar e a impaciência para conversar via redes sociais não são normais. Não tem que ser assim. A gente não tem que se acostumar com a falta de ideias, a desesperança ou os óculos antigo.
Não sei quando vai ser possível usar os óculos novos, vestir o casaco encontrado, experimentar a receita com o novo ingrediente. Tem gente que diz que nunca mais, e pode muito bem ser verdade. Mas, com base em uma observação pouco cautelosa e bastante emocionada dos meus últimos dias, eu estou escolhendo acreditar no contrário. Como tanta gente fez e faz, abraçar a utopia, nossa velha amiga, perdida e abandonada nesse último ano, em que qualquer migalha parecia confete (seja o de jogar ou o de comer). Escolher estar atento e forte, como a Gal nos ensinou, presentes no aqui e no agora, como diz minha companheira de quarentena Pri Leite, sem perder a ternura, como aconselhou Che Guevara, munidos do pessimismo da razão e do otimismo da vontade (essa máxima que dizem que é Gramsci, mas na verdade é Romain Rolland), com uma mistura nem sempre balanceada de medo e coragem, mas em frente. Quem sabe conseguindo manter nossas faculdades mentais intactas.
Indicações da semana:
Sabem quando você conhece uma pessoa e, a partir daí, começa a encontrar com ela por toda parte? Na vizinhança da sua casa, na sua padaria favorita, no restaurante ao lado do trabalho, em um bar qualquer que resolveu ir na sexta-feira. Isso também pode acontecer com uma imagem, uma música ou uma nova informação. Em algumas ocasiões, existem explicações racionais para o fato: a pessoa mora perto da sua casa, o assunto pelo qual você se interessou está mesmo em alta, a música dos anos 80 que você ouviu e gostou (achando que descobria um achado) é na verdade o mais novo sucesso do TikTok. Ou às vezes é só um efeito provocado pelo fato de você ter passado a prestar atenção em algo.
De qualquer forma, isso me ocorreu com a xilogravura A Grande Onda de Kanagawa, do mestre japonês Hokusai, publicada em 1830 ou 1831 na série Trinta e seis vistas do monte Fuji. Se fui uma vítima do sucesso da obra ou do acaso, já não importa, mas deixo aqui para que vocês possam ver ela por toda parte também.
Tenho o costume de grifar frases nos livros, mas levo a tarefa bastante a sério e não saio destacando qualquer coisa, e a maioria dos livros que leio passa ilesa de meu marca-texto. É raro que um romance tenha mais de dois grifos, porém sou mais generosa com contos e poemas, mas não a ponto de deixar muitas páginas marcadas. Quando li Nove Histórias, uma coleção de contos do Salinger, estava em uma fase muito apaixonada por ele e pela família Glass e grifei um monte de partes de “Teddy”, o conto que encerra o livro, uma frase de “Um dia ideal para os peixes-banana”, o primeiro conto da coleção, e dois trechos de “Para Esmé com amor e sordidez”, ambos falando sobre o comprometimento das faculdades mentais, e os cito sempre que encontro uma boa oportunidade, como agora: “Imagine um homem realmente sonolento, Esmé, e você verá que ele tem sempre alguma chance de se tornar outra vez um homem com todas as fac... com todas as f-a-c-u-l-d-a-d-e-s intactas”.
Semana passada assisti a terceira temporada de You (série original Netflix). Achei que poderia ser mais uma temporada com o protagonista perseguindo alguém por 10 episódios, com um toque de emoção por agora ele estar casado (e logo com quem). Mas a série surpreendeu e achei a temporada excelente, semelhante e diferente o suficiente das anteriores, uma crítica ácida a uma certa forma de vida dos subúrbios americanos, principalmente no início da temporada, fazendo com que a gente consiga se aproximar de Joe e Love nesse ódio saudável por pessoas antivacina que não comem açúcar. No decorrer dos episódios, a crítica se suaviza para que os protagonistas possam brilhar, no sentido mais mortífero da palavra. E a temporada é, sem dúvidas, da Love (she's so crazy love her). Se tiverem assistido e quiserem comentar o final (que eu particularmente gostei) e teorias para a quarta temporada, contem comigo.
Esse Instagram com cards de receitas vintage para passar o tempo quando tem alguns minutos livres ou perder horas quando tem mil coisas para fazer:
Essa thread sobre a única blusa de Gal Costa:
Quem não tem uma roupinha favorita que é perfeita para qualquer ocasião?
Outras Folhinha de abacate já espalhadas por aí:
Cadê a mamaim dele? - E outros bordões
Alfalfa versus Mazzaropi - Cada um tem a nostalgia que merece
Um abraço levemente otimista nesta segunda-feira. Espero que na medida certa.
Revisão: Otávio Campos
Amiga, te encontrar presencialmente me trouxe tanta coisa! Eu vinha de uma sensação de que a realidade era uma coisa cinza e a vida feliz era um mix de lembrança com utopia, e de que a eu social agradável não existia mais, ver você me trouxe outra percepção de mim e do real e as esperanças escondidas dentro de mim deram as caras pea seguir como no final do seu texto. ❤️
Te amo e amo começar a semana com a folhinha, minha professora preferida
Será que terei que rever minha autoavaliação sobre me considerar "normal" mesmo durante a pandemia? Brincadeiras à parte, espero reencontrar meu casaco perdido. Beijos.